quinta-feira, 3 de outubro de 2013

E da Psicose, o que temos para hoje?



E DA PSICOSE, O QUE TEMOS PARA HOJE?



Autor: Olivan Liger



O Olhar de Freud:


Explorar o tema da psicose na contemporaneidade implica não somente em buscar os arcabouços teóricos freudianos, mas incluir os psicanalistas que se dedicaram a estudar o tema e partindo do que Freud observou, complementaram adendos que possibilitam hoje olhar a psicose de uma forma mais ampla, clara e até mesmo tratável.

Se Freud nos deixou um arcabouço teórico incompleto sobre a psicose, faltou então uma articulação entre uma teoria mais completa e a clínica. Se a teoria é o recurso que temos, enquanto psicanalistas para dirimir os impasses cotidianos da clínica, cabe-nos um material que nos possibilite pensar a teoria e também buscar a sua aplicabilidade no dia a dia. Esta foi a principal contribuição dos psicanalistas pós-freudianos contemporâneos.

Qual é o lugar que a psicose ocupa no trabalho de Freud? No escrito de 1896 – Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa – Freud vislumbra a possibilidade de tratar a psicose, entretanto, quinze anos depois, no seu texto de 1911 – Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (dementia paranoides) – diz o autor, ver poucas possibilidades de um tratamento para a patologia.

O caso Schreber, objeto de estudo e esforço de Freud para entender a manifestação psicótica, se tornou destaque no legado freudiano acerca das múltiplas observações que faz sobre a paranóia do presidente Schreber. Cabe ressaltar que Freud nem mesmo conheceu Schreber e todo o seu estudo foi feito através do relato biográfico de Schreber. Tornou-se conhecido como o “Caso Schreber”.

Em 1919, Freud escreve – O Estranho – artigo que tenta dar uma compreensão ao fenômeno de estranhamento e seus afetos . Este trabalho tenta aprofundar o conceito de psicose. Freud fala desse afeto (o estranhamento) buscando explicá-lo através da angústia de castração e recalcamento. Se, diante da sua ambiguidade, não conseguiu chegar a um ponto específico da definição do conceito, esse trabalho serviu de base para desenvolver sua teoria sobre a angústia.

Durante todo o trabalho de Freud, constatamos momentos de aproximação e afastamento da tentativa de compreender a psicose, evidenciando o seu próprio “estranhamento” quanto às manifestações psicóticas imprevisíveis, rígida e assistemáticas.

Tomando o seu esforço mais fecundo na compreensão da psicose – o caso Schreber – Freud argumenta a base de suas observações, mesmo sem conhecer o presidente Schreber:


A investigação psicanalítica da paranóia seria completamente impossível se os próprios pacientes não possuíssem a peculiaridade de revelar (de forma distorcida, é verdade) exatamente aquelas coisas que os outros neuróticos mantêm escondidas como um segredo.
Visto que os paranóicos não podem ser compelidos a superar suas resistências internas e desde que, de qualquer modo, só dizem o que querem dizer, decorre disto ser a paranóia um distúrbio em que um relatório escrito ou uma historia clínica impressa podem tomar lugar do conhecimento pessoal do paciente. Por esta razão penso ser legítimo basear interpretações analíticas na história clínica de um paciente que sofria de paranóia (ou, precisamente, de dementia paranoides) e a quem nunca vi, mas que escreveu sua própria história clínica e publicou-a (Freud, 1911, p. 21).


Schreber foi acometido de paranóia e durante a sua existência passou por três internações. Um dos delírios de Schreber no qual era dizia que deveria ser bom ser uma mulher e submeter-se à cópula, serviu como fundamento para diversas observações posteriores de Freud, na tentativa de compreender o fenômeno paranóico. Schreber acreditava ter diversas enervações femininas no seu corpo e a partir daí procriaria uma nova raça fecundada diretamente por Deus. O fato desencadeador da psicose era, para Freud, o desejo de ter filhos e não tê-lo conseguido.

Freud entende a paranóia, elegendo como base os relatos de Schreber, que seu fundamento encontra-se numa homossexualidade sublimada. A paranóia é o mecanismo de defesa usado para recalcar os desejos homossexuais de Schreber por seu primeiro médico, nas mãos de quem temia sofrer algum tipo de abuso e logo adiante a figura do médico abusador é transferida para um Deus fecundador de uma raça pura.

Para Freud, o surgimento da paranóia é o resultado de um desvio nas primeiras fases do desenvolvimento: entre o Eu ideal e o Ideal de Eu. No primeiro, a libido se manifesta voltada para o auto-erotismo, onde o próprio corpo é tomado como objeto de prazer. Após um tempo, é esperado que o bebê transfira a sua libido para objetos, configurando assim as suas primeiras relações objetais. Na paranóia, a fase de auto-erotização é demasiada estendida, fazendo com que na fase das relações objetais, seja buscado ainda um órgão genital igual para a obtenção do prazer, a homossexualidade que só depois de um tempo se direcionará à heterossexualidade, recalcando todo o desejo homossexual, como exigência e demanda do meio. Para que surja a paranóia, deverá haver o fracasso da recalque e o retorno do recalcado. Este retorno se faz através dos sintomas paranóicos.

Cabe ressaltar que Freud fazia uma distinção entre a paranóia e a esquizofrenia, no estudo do caso Screber propôs que ambas pudessem estar ali combinadas. Hoje, esta distinção essa desmantelada, uma vez que a paranóia deixou de ser uma entidade patológica e passou a um estado que pode estar presente em diversas outras psicopatologias.

Pode-se entender, ao correlacionar as observações de Freud com a teoria do desenvolvimento psicossexual que a psicose e a paranóia são estados de regressão aos primórdios do desenvolvimento. O bebê, nos primeiros meses de vida, ou seja, especificamente na etapa oral de sucção é dominado pelo id, pelo narcisismo primário, onde o corpo é tomado como objeto de auto-erotização; se vê como centro de tudo que existe e o exterior é parte sua; predomina a fantasia substituindo qualquer realidade. Uma regressão a esta etapa de desenvolvimento seria a psicose em si: a ruptura com a realidade e a substituição dessa pela fantasia, o domínio do id sobre a corporalidade e o Eu e os deliríos e alucinações provenientes da fantasia na qual o psicótico vive.

Já a paranóia poderá ser compreendida através da dinâmica da etapa oral expulsiva, onde já existe o estatuto das relações objetais. Diante da angústia de que seus produtos não são aceitos e a impossibilidade de retê-los, o bebê colocará seus produtos no mundo e registrará a cobrança e a punição do mundo exterior pelo seu ato. O ato regressivo que resultará no sintoma paranóico nos resgata a ideia de um mundo perseguidor e punidor e faz recalcado o registro de ter colocado seus supostos produtos ruins nele. A psicose teria sua origem em pleno narcisismo primário enquanto a paranóia surgiria na passagem do narcisismo primário para o narcisismo, ou seja, no contínuum onde a criança começa a perceber o outro e a ele se vincular.



A releitura de Lacan:


Para Lacan, deve-se inicialmente entender sua teoria como metafórica, simbólica e rica em significantes.

As etapas de desenvolvimento de Lacan ocorrem através de três registros psíquicos: o real, o imaginário e o simbólico. O real é o furo, o que falta, a falta em si, o real não existe (aforismo Lacaniano) pois se trata daquilo que é irrecuperável; o imaginário é da ordem da imagética, a criação de imagens e o ato do imaginar; o Simbólico é o uso da palavra com seus significantes, é a entrada no mundo da cultura e da civilização.

A criança vive inicialmente uma relação fusional com a mãe, relação esta alimentada pela mãe. Percebe-se como o falo da mãe. Falo, neste contexto vai além de uma representação física de pênis, o objeto fálico é aquele que completa, aquele que tráz a potência e em torno do qual tudo mais orbita e se encontra submetido. A criança percebe-se como aquilo que completa a mãe e a mãe vê no seu bebê a sua completude também. Na sequência do desenvolvimento, a mãe se afasta gerando uma falta no seu bebê, já que aquilo que a completa não pode estar separado. Esta falta é da ordem da privação, pois a mãe nesse momento é um objeto de necessidade. A privação é a falta real de um objeto simbólico (função materna) (DOR, 1989, p. 84). Ao se dar conta que gradativamente a mãe se afasta, o bebê vai se dando conta de que há algo além dele que completa a mãe e este algo é uma representação simbólica do pai. A mãe, então, favorece a entrada do pai na díade com a forma pela qual a ele se referencia, olha ou trata. Este é o primeiro tempo do Édipo, onde se instala a metáfora do Nome-do-Pai. Nessa etapa, a criança imagina objetos que possam suprir a falta da mãe e se inscreve no registro do Imaginário, dominada pela frustração da falta do objeto que a investe libidinalmente, a mãe, a frustração é a falta imaginária de um objeto real. Aqui assinala-se a angústia do corpo despedaçado, não há unidade corporal e o corpo é sentido como membros disjuntos. Paralelo a isto, inicia-se a fase de constituição do Eu: o estádio do espelho que irá dos seis aos dezoito meses. Num primeiro momento do estádio do espelho, a criança percebe sua própria imagem como um outro, tende a apreender, tocar a imagem ou destruí-la por ser uma ameaça de tomar o seu lugar (o duplo). Num segundo momento, dá-se conta de que a imagem não é real, diferencia a imagem do outro da realidade do outro para chegar a um terceiro tempo e se re-conhecer na imagem. Neste ponto se dá a formação do Eu e o corpo passa a ser sentido como uma unidade. Simultâneo ao estádio do espelho, a criança rivaliza o pai simbólico que interditou sua fusão com a mãe. Passa da fantasia de ser o falo e caminha para a fantasia de ter o falo. O pai simbólico entra interditando não somente a criança, mas a mãe e deixando claro o seu “tendo direito” (refêrencia de Lacan) sobre a mãe. Ao perceber que a mãe se submete ao interdito e à lei do pai, a criança deseja ter o falo, não mais ser, mas agora ter (to be or not to be).


A criança é confrontada com esta lei na medida em que descobre que a própria mãe depende dela ao nível de satisfação que pode proporcionar às demandas da criança. Em outras palavras, o endereçamento do desejo da criança interpela inevitavelmente a lei do outro através da mãe. (DOR, 1989, p. 85)


Aqui, a lei do pai também evoca a castração. A criança percebe a essência da estrutura do desejo como o que submete o desejo de cada um à lei do desejo do outro. Através da metáfora do Nome-do-Pai, que o pai simbólico introduz a criança no registro do Simbólico. Ao pertencer à cultura e à civilização e suas leis, o sujeito passa a ser representado pela palavra. Como dizia Lacan: “ Pela palavra, que já é uma presença feita de ausência, a própria ausência vem a se nomear”.à Inaugura-se o recalque e o Supereu e daí o sujeito se aliena à linguagem. A castração passa a ser a falta simbólica de um objeto imaginário, o falo, que agora é circulante.

O Nome-do-pai é um representante simbólico para qualquer expressão significativa que venha a ocupar o lugar da metáfora do desejo da criança, portanto é inominável, subjetivo e simbólico.

O que definirá o rumo da existência de cada sujeito se posiciona perante o interdito e a lei do pai. Se a criança aceita o interdito e é submetida à lei paterna, estará dentro de uma estrutura neurótica, cuja base é o recalque. Se denega a lei paterna, aceitando-a em alguns momentos e negando-a em outros, se estruturará como um perverso.

A estrutura psicótica está ligada à forclusão ou foraclusão (Verwerfung) que é um dos conceitos cruciais da teoria Lacaniana.
A foraclusão consiste precisamente na suspensão de qualquer resposta à solicitação dirigida a um sujeito, de ter que fornecer uma mensagem, praticar um ato ou instituir um limite. Por isto a foraclusão é a não vinda do significante do Nome-do-Pai no lugar e no momento em que ele é chamado a advir (…..) A foraclusão é a não resposta a uma mensagem ou a uma demanda proveniente de uma pessoa em posição terceira em referência à relação dual e imaginária entre o sujeito, futuro psicótico, e um semelhante apaixonadamente amado ou odiado (NASIO, 1988, p. 159)
Em outras palavras, pode-se entender a psicose como uma relação fusional entre o bebê e a mãe, um excesso de mãe que maldiz o pai, não lhe permitindo a entrada na díade, de tal forma que o bebê avança no seu desenvolvimento preso nessa situação fusional e cujo significante do Nome-do-pai não lhe chega para inscrevê-lo no registro do Simbólico, da lei do pai e das leis civilizatórias. Esta criança não apreenderá o Simbólico, ficando presa em registros anteriores. A forclusão do Nome-do-Pai resultará na não ocorrência do recalque original, impossibilitando que posteriormente qualquer outro significante venha a interditar essa relação. Por não ter acesso ao plano simbólico, o psicótico entende tudo ao pé da letra. Vive a fantasia de fusão que o faz romper com a realidade a sua volta.

Para Lacan, a psicose é passível de tratamento, uma vez que os delírios ou metáfora delirante como Lacan os chama teria uma função para o psicótico. Para Lacan, o inconsciente está estruturado como linguagem, assim sendo a metáfora delirante teria como objetivo fazer a suplência (aceder ao lugar) da metáfora paterna, suprindo-lhe assim a falta de significante da metáfora do Nome-do-Pai:
[...] o que está em jogo nas psicoses é a questão da significação, mas uma significação outra, que não opera a partir da substituição significante efetuada pela metáfora paterna. Nesse sentido, o delírio é uma tentativa de cura pela via da significação. Mas a construção delirante só ganha estatuto de metáfora delirante quando atinge a função de restabelecer a relação entre o significante e o significado. (MENICUCCI, 2008, p. 75)
A metáfora delirante funciona como elemento que tenta restabelecer a relação entre significante e significado, o que não é possível ao sujeito que não se inscreveu no registro do Simbólico. Esta tentativa de reestabelecimento é necessária para estabilizar o psicótico, podendo ser tratada ou concretizada na arte. É uma processo de reconstrução, de reestabelecimento É o tratamento da psicose pela psicose.

Se, para Freud, a impossibilidade de uma transferência seria um obstáculo ao tratamento da psicose, para Lacan, a transferência é possível, embora diferente da transferência idealizada por Freud e através da escuta do delírio é possível viabilizar um tratamento para a psicose.

E por fim, sempre que houver uma demanda de tratamento de um psicótico, pode-se recorrer ao arcabouço teórico que nos dá uma compreensão dos diversos fenômenos da psicose para então poder ter a condição de visibilizar uma forma de tratamento adequada e apropriada àquela demanda.


Referências bibliográficas:


DOR, J. Introdução à leitura de Lacan, o inconsciente estruturado como linguagem. Porto Alegre: Artmed, 1989
FREUD, S. (1911). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um

caso de paranóia (dementia paranoides). (Obras psicológicas completas de Sigmund

Freud, Vol.XII). Rio de Janeiro: Imago Ed.1996

_______. (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução . (Obras psicológicas

completas de Sigmund Freud, Vol. XIV). Rio de Janeiro: Imago Ed.1996
_______. (1919). O Estranho (Obras psicológicas completas de Sigmund

Freud, Vol. XVII). Rio de Janeiro: Imago Ed.1996

_______. (1896). Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa.

(Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. III). Rio de Janeiro: Imago

Ed.1996
MENICUCCI, Juliana Gonçalves. A metáfora delirante na clínica das psicoses: limites,

impasses e paradoxos. 2008. 120f. Dissertação (Mestrado em Psicologia). Universidade Federal De Minas Gerais, Minas Gerais, 2008. Disponível em:

<http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/1843/TMCB-

7X9JHR/1/dissertacaopsicanalise_julianamenicucci_201009.pdf>.
NASIO, .J-D. Lições sobre os 7 conceitos cruciais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997


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