E
DA PSICOSE, O QUE TEMOS PARA HOJE?
Autor:
Olivan Liger
O
Olhar de Freud:
Explorar
o tema da psicose na contemporaneidade implica não somente em buscar
os arcabouços teóricos freudianos, mas incluir os psicanalistas que
se dedicaram a estudar o tema e partindo do que Freud observou,
complementaram adendos que possibilitam hoje olhar a psicose de uma
forma mais ampla, clara e até mesmo tratável.
Se
Freud nos deixou um arcabouço teórico incompleto sobre a psicose,
faltou então uma articulação entre uma teoria mais completa e a
clínica. Se a teoria é o recurso que temos, enquanto psicanalistas
para dirimir os impasses cotidianos da clínica, cabe-nos um material
que nos possibilite pensar a teoria e também buscar a sua
aplicabilidade no dia a dia. Esta foi a principal contribuição dos
psicanalistas pós-freudianos contemporâneos.
Qual
é o lugar que a psicose ocupa no trabalho de Freud? No escrito de
1896 – Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa –
Freud vislumbra a possibilidade de tratar a psicose, entretanto,
quinze anos depois, no seu texto de 1911 – Notas psicanalíticas
sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (dementia
paranoides) – diz o autor, ver poucas possibilidades de um
tratamento para a patologia.
O
caso Schreber, objeto de estudo e esforço de Freud para entender a
manifestação psicótica, se tornou destaque no legado freudiano
acerca das múltiplas observações que faz sobre a paranóia do
presidente Schreber. Cabe ressaltar que Freud nem mesmo conheceu
Schreber e todo o seu estudo foi feito através do relato biográfico
de Schreber. Tornou-se conhecido como o “Caso Schreber”.
Em
1919, Freud escreve – O Estranho – artigo que tenta dar uma
compreensão ao fenômeno de estranhamento e seus afetos . Este
trabalho tenta aprofundar o conceito de psicose. Freud fala desse
afeto (o estranhamento) buscando explicá-lo através da angústia de
castração e recalcamento. Se, diante da sua ambiguidade, não
conseguiu chegar a um ponto específico da definição do conceito,
esse trabalho serviu de base para desenvolver sua teoria sobre a
angústia.
Durante
todo o trabalho de Freud, constatamos momentos de aproximação e
afastamento da tentativa de compreender a psicose, evidenciando o seu
próprio “estranhamento” quanto às manifestações psicóticas
imprevisíveis, rígida e assistemáticas.
Tomando
o seu esforço mais fecundo na compreensão da psicose – o caso
Schreber – Freud argumenta a base de suas observações, mesmo sem
conhecer o presidente Schreber:
A
investigação psicanalítica da paranóia seria completamente
impossível se os próprios pacientes não possuíssem a
peculiaridade de revelar (de forma distorcida, é verdade) exatamente
aquelas coisas que os outros neuróticos mantêm escondidas como um
segredo.
Visto
que os paranóicos não podem ser compelidos a superar suas
resistências internas e desde que, de qualquer modo, só dizem o
que querem dizer, decorre disto ser a paranóia um distúrbio em que
um relatório escrito ou uma historia clínica impressa podem tomar
lugar do conhecimento pessoal do paciente. Por esta razão penso
ser legítimo basear interpretações analíticas na história
clínica de um paciente que sofria de paranóia (ou, precisamente,
de dementia paranoides) e a quem nunca vi, mas que escreveu sua
própria história clínica e publicou-a (Freud, 1911, p. 21).
Schreber
foi acometido de paranóia e durante a sua existência passou por
três internações. Um dos delírios de Schreber no qual era dizia
que deveria ser bom ser uma mulher e submeter-se à cópula, serviu
como fundamento para diversas observações posteriores de Freud, na
tentativa de compreender o fenômeno paranóico. Schreber acreditava
ter diversas enervações femininas no seu corpo e a partir daí
procriaria uma nova raça fecundada diretamente por Deus. O fato
desencadeador da psicose era, para Freud, o desejo de ter filhos e
não tê-lo conseguido.
Freud
entende a paranóia, elegendo como base os relatos de Schreber, que
seu fundamento encontra-se numa homossexualidade sublimada. A
paranóia é o mecanismo de defesa usado para recalcar os desejos
homossexuais de Schreber por seu primeiro médico, nas mãos de quem
temia sofrer algum tipo de abuso e logo adiante a figura do médico
abusador é transferida para um Deus fecundador de uma raça pura.
Para
Freud, o surgimento da paranóia é o resultado de um desvio nas
primeiras fases do desenvolvimento: entre o Eu ideal e o Ideal de Eu.
No primeiro, a libido se manifesta voltada para o auto-erotismo, onde
o próprio corpo é tomado como objeto de prazer. Após um tempo, é
esperado que o bebê transfira a sua libido para objetos,
configurando assim as suas primeiras relações objetais. Na
paranóia, a fase de auto-erotização é demasiada estendida,
fazendo com que na fase das relações objetais, seja buscado ainda
um órgão genital igual para a obtenção do prazer, a
homossexualidade que só depois de um tempo se direcionará à
heterossexualidade, recalcando todo o desejo homossexual, como
exigência e demanda do meio. Para que surja a paranóia, deverá
haver o fracasso da recalque e o retorno do recalcado. Este retorno
se faz através dos sintomas paranóicos.
Cabe
ressaltar que Freud fazia uma distinção entre a paranóia e a
esquizofrenia, no estudo do caso Screber propôs que ambas pudessem
estar ali combinadas. Hoje, esta distinção essa desmantelada, uma
vez que a paranóia deixou de ser uma entidade patológica e passou a
um estado que pode estar presente em diversas outras psicopatologias.
Pode-se
entender, ao correlacionar as observações de Freud com a teoria do
desenvolvimento psicossexual que a psicose e a paranóia são estados
de regressão aos primórdios do desenvolvimento. O bebê, nos
primeiros meses de vida, ou seja, especificamente na etapa oral de
sucção é dominado pelo id, pelo narcisismo primário, onde o corpo
é tomado como objeto de auto-erotização; se vê como centro de
tudo que existe e o exterior é parte sua; predomina a fantasia
substituindo qualquer realidade. Uma regressão a esta etapa de
desenvolvimento seria a psicose em si: a ruptura com a realidade e a
substituição dessa pela fantasia, o domínio do id sobre a
corporalidade e o Eu e os deliríos e alucinações provenientes da
fantasia na qual o psicótico vive.
Já
a paranóia poderá ser compreendida através da dinâmica da etapa
oral expulsiva, onde já existe o estatuto das relações objetais.
Diante da angústia de que seus produtos não são aceitos e a
impossibilidade de retê-los, o bebê colocará seus produtos no
mundo e registrará a cobrança e a punição do mundo exterior pelo
seu ato. O ato regressivo que resultará no sintoma paranóico nos
resgata a ideia de um mundo perseguidor e punidor e faz recalcado o
registro de ter colocado seus supostos produtos ruins nele. A psicose
teria sua origem em pleno narcisismo primário enquanto a paranóia
surgiria na passagem do narcisismo primário para o narcisismo, ou
seja, no contínuum onde a criança começa a perceber o outro e a
ele se vincular.
A
releitura de Lacan:
Para
Lacan, deve-se inicialmente entender sua teoria como metafórica,
simbólica e rica em significantes.
As
etapas de desenvolvimento de Lacan ocorrem através de três
registros psíquicos: o real, o imaginário e o simbólico. O real é
o furo, o que falta, a falta em si, o
real não existe (aforismo
Lacaniano)
pois se trata daquilo que é irrecuperável; o imaginário é da
ordem da imagética, a criação de imagens e o ato do imaginar; o
Simbólico é o uso da palavra com seus significantes, é a entrada
no mundo da cultura e da civilização.
A
criança vive inicialmente uma relação fusional com a mãe, relação
esta alimentada pela mãe. Percebe-se como o falo da mãe. Falo,
neste contexto vai além de uma representação física de pênis, o
objeto fálico é aquele que completa, aquele que tráz a potência e
em torno do qual tudo mais orbita e se encontra submetido. A criança
percebe-se como aquilo que completa a mãe e a mãe vê no seu bebê
a sua completude também. Na sequência do desenvolvimento, a mãe se
afasta gerando uma falta no seu bebê, já que aquilo que a completa
não pode estar separado. Esta falta é da ordem da privação, pois
a mãe nesse momento é um objeto de necessidade. A privação é a
falta real de um objeto simbólico (função materna) (DOR, 1989, p.
84). Ao se dar conta que gradativamente a mãe se afasta, o bebê vai
se dando conta de que há algo além dele que completa a mãe e este
algo é uma representação simbólica do pai. A mãe, então,
favorece a entrada do pai na díade com a forma pela qual a ele se
referencia, olha ou trata. Este é o primeiro tempo do Édipo, onde
se instala a metáfora do Nome-do-Pai. Nessa etapa, a criança
imagina objetos que possam suprir a falta da mãe e se inscreve no
registro do Imaginário, dominada pela frustração da falta do
objeto que a investe libidinalmente, a mãe, a frustração é a
falta imaginária de um objeto real. Aqui assinala-se a angústia do
corpo despedaçado, não há unidade corporal e o corpo é sentido
como membros disjuntos. Paralelo a isto, inicia-se a fase de
constituição do Eu: o estádio do espelho que irá dos seis aos
dezoito meses. Num primeiro momento do estádio do espelho, a criança
percebe sua própria imagem como um outro, tende a apreender, tocar a
imagem ou destruí-la por ser uma ameaça de tomar o seu lugar (o
duplo). Num segundo momento, dá-se conta de que a imagem não é
real, diferencia a imagem do outro da realidade do outro para chegar
a um terceiro tempo e se re-conhecer na imagem. Neste ponto se dá a
formação do Eu e o corpo passa a ser sentido como uma unidade.
Simultâneo ao estádio do espelho, a criança rivaliza o pai
simbólico que interditou sua fusão com a mãe. Passa da fantasia de
ser o falo e caminha para a fantasia de ter o falo. O pai simbólico
entra interditando não somente a criança, mas a mãe e deixando
claro o seu “tendo direito” (refêrencia de Lacan) sobre a mãe.
Ao perceber que a mãe se submete ao interdito e à lei do pai, a
criança deseja ter o falo, não mais ser, mas agora ter (to be or
not to be).
A
criança é confrontada com esta lei na medida em que descobre que a
própria mãe depende dela ao nível de satisfação que pode
proporcionar às demandas da criança. Em outras palavras, o
endereçamento do desejo da criança interpela inevitavelmente a
lei do outro através da mãe. (DOR, 1989, p. 85)
Aqui,
a lei do pai também evoca a castração. A criança percebe a
essência da estrutura do desejo como o que submete o desejo de cada
um à lei do desejo do outro. Através da metáfora do Nome-do-Pai,
que o pai simbólico introduz a criança no registro do Simbólico.
Ao pertencer à cultura e à civilização e suas leis, o sujeito
passa a ser representado pela palavra. Como dizia Lacan: “ Pela
palavra, que já é uma presença feita de ausência, a própria
ausência vem a se nomear”.à Inaugura-se o recalque e o Supereu e
daí o sujeito se aliena à linguagem. A castração passa a ser a
falta simbólica
de um objeto imaginário, o falo, que agora é circulante.
O
Nome-do-pai é um representante simbólico para qualquer expressão
significativa que venha a ocupar o lugar da metáfora do desejo da
criança, portanto é inominável, subjetivo e simbólico.
O
que definirá o rumo da existência de cada sujeito se posiciona
perante o interdito e a lei do pai. Se a criança aceita o interdito
e é submetida à lei paterna, estará dentro de uma estrutura
neurótica, cuja base é o recalque. Se denega a lei paterna,
aceitando-a em alguns momentos e negando-a em outros, se estruturará
como um perverso.
A
estrutura psicótica está ligada à forclusão ou foraclusão
(Verwerfung) que é um dos conceitos cruciais da teoria Lacaniana.
A
foraclusão consiste precisamente na suspensão de qualquer resposta
à solicitação dirigida a um sujeito, de ter que fornecer uma
mensagem, praticar um ato ou instituir um limite. Por isto a
foraclusão é a não vinda do significante do Nome-do-Pai no
lugar e no momento em que ele é chamado a advir (…..) A
foraclusão é a não resposta a uma mensagem ou a uma demanda
proveniente de uma pessoa em posição terceira em referência à
relação dual e imaginária entre o sujeito, futuro psicótico, e
um semelhante apaixonadamente amado ou odiado (NASIO, 1988, p. 159)
Em
outras palavras, pode-se entender a psicose como uma relação
fusional entre o bebê e a mãe, um excesso de mãe que maldiz o pai,
não lhe permitindo a entrada na díade, de tal forma que o bebê
avança no seu desenvolvimento preso nessa situação fusional e cujo
significante do Nome-do-pai não lhe chega para inscrevê-lo no
registro do Simbólico, da lei do pai e das leis civilizatórias.
Esta criança não apreenderá o Simbólico, ficando presa em
registros anteriores. A forclusão do Nome-do-Pai resultará na não
ocorrência do recalque original, impossibilitando que posteriormente
qualquer outro significante venha a interditar essa relação. Por
não ter acesso ao plano simbólico, o psicótico entende tudo ao pé
da letra. Vive a fantasia de fusão que o faz romper com a realidade
a sua volta.
Para
Lacan, a psicose é passível de tratamento, uma vez que os delírios
ou metáfora delirante como Lacan os chama teria uma função para o
psicótico. Para Lacan, o inconsciente está estruturado como
linguagem, assim sendo a metáfora delirante teria como objetivo
fazer a suplência (aceder ao lugar) da metáfora paterna,
suprindo-lhe assim a falta de significante da metáfora do
Nome-do-Pai:
[...]
o que está em jogo nas psicoses é a questão da significação, mas
uma significação outra, que não opera a partir da substituição
significante efetuada pela metáfora paterna. Nesse sentido, o
delírio é uma tentativa de cura pela via da significação. Mas a
construção delirante só ganha estatuto de metáfora delirante
quando atinge a função de restabelecer a relação entre o
significante e o significado. (MENICUCCI, 2008, p. 75)
A
metáfora delirante funciona como elemento que tenta restabelecer a
relação entre significante e significado, o que não é possível
ao sujeito que não se inscreveu no registro do Simbólico. Esta
tentativa de reestabelecimento é necessária para estabilizar o
psicótico, podendo ser tratada ou concretizada na arte. É uma
processo de reconstrução, de reestabelecimento É o tratamento da
psicose pela psicose.
Se,
para Freud, a impossibilidade de uma transferência seria um
obstáculo ao tratamento da psicose, para Lacan, a transferência é
possível, embora diferente da transferência idealizada por Freud e
através da escuta do delírio é possível viabilizar um tratamento
para a psicose.
E
por fim, sempre que houver uma demanda de tratamento de um psicótico,
pode-se recorrer ao arcabouço teórico que nos dá uma compreensão
dos diversos fenômenos da psicose para então poder ter a condição
de visibilizar uma forma de tratamento adequada e apropriada àquela
demanda.
Referências
bibliográficas:
DOR,
J.
Introdução à leitura de Lacan, o inconsciente estruturado como
linguagem.
Porto Alegre: Artmed, 1989
FREUD,
S. (1911). Notas
psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um
caso
de paranóia (dementia paranoides).
(Obras psicológicas completas de Sigmund
Freud,
Vol.XII). Rio de Janeiro: Imago Ed.1996
_______.
(1914). Sobre
o narcisismo: uma introdução .
(Obras psicológicas
completas
de Sigmund Freud, Vol. XIV). Rio de Janeiro: Imago Ed.1996
_______.
(1919). O
Estranho (Obras
psicológicas completas de Sigmund
Freud,
Vol. XVII). Rio de Janeiro: Imago Ed.1996
_______.
(1896). Observações
adicionais sobre as neuropsicoses de defesa.
(Obras
psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. III). Rio de Janeiro:
Imago
Ed.1996
MENICUCCI,
Juliana Gonçalves. A
metáfora delirante na clínica das psicoses:
limites,
impasses
e paradoxos.
2008. 120f. Dissertação (Mestrado em Psicologia). Universidade
Federal De Minas Gerais, Minas Gerais, 2008. Disponível em:
<http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/1843/TMCB-
7X9JHR/1/dissertacaopsicanalise_julianamenicucci_201009.pdf>.
NASIO,
.J-D.
Lições sobre os 7 conceitos cruciais da psicanálise.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997
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